CVM decide se o acionista-administrador pode votar em ação de responsabilidade civil contra si mesmo

 

Lucas Thedim S. Ribeiro de Barros
Lara Begname de Castro

 

No dia 23.05.2023, a CVM iniciou o julgamento do PAS n° 19957.008172/2021-93 (“Caso Gol”), em que se discute a possibilidade de o acionista-administrador votar em assembleias gerais que deliberam sobre a propositura de ação de responsabilidade contra si mesmo.

Apesar de o julgamento em questão ainda não ter sido concluído, uma vez que a Diretora Flávia Perlingeiro pediu vista do processo, os demais membros do Colegiado já manifestaram seus entendimentos acerca da matéria, tornando provável a superação do precedente estabelecido no julgamento do PAS RJ2014/10556 (“Caso Forjas Taurus”)[i].

No caso do Forjas Taurus, o Colegiado entendeu que o exercício de voto do acionista-administrador acerca da propositura de ação de responsabilidade contra si mesmo estaria, de forma apriorística, proibido, em linha com a teoria do conflito formal. O Diretor Gustavo Gonzalez, contudo, apesar de seguir a teoria material (ou substancial) do conflito de interesses, entendeu que o acionista-administrador também estaria proibido de votar a priori, pois: (i) aprovação de ação de responsabilidade seria decorrência lógica da reprovação das contas da administração; e (ii) o fundamento da LSA nesse ponto seria evitar que o acionista fosse juiz e parte simultaneamente, o que teria ocorrido no caso[ii].

No Caso Gol, a SEP instaurou processo administrativo em face dos acionistas controladores indiretos e membros do conselho de administração da Smiles Fidelidade S.A. (“Smiles” ou “Companhia”), companhia aberta diretamente controlada pela Gol Linhas Aéreas Inteligentes S.A. (“GLAI”), também companhia aberta, em razão do voto da GLAI nas AGEs que deliberaram sobre a propositura de ação de responsabilidade contra os diretores e membros do conselho de administração (em conjunto “Administradores”) da Smiles.

Segundo apurado, as AGEs, convocadas por um grupo de acionistas da Smiles, visavam a deliberar sobre a propositura de ação fundada no art. 159 da LSA, contra a diretoria e o conselho de administração da Companhia, em razão de violação, pelos referidos membros da administração da Smiles, de seus deveres de diligência e lealdade, pois a Companhia teria sofrido prejuízos em razão da celebração de 3 contratos de adiantamento de passagens aéreas com a Gol Linhas Aéreas S.A. (“Gol”), empresa coligada da Companhia (“Contratos”).

Em especial, foi destacado que os Contratos teriam sido ilegais, pois: (i) tais contratações teriam sido realizadas no contexto da pandemia, e, portanto, sem necessidade de celebrar tais instrumentos; e (ii) não teria sido respeitada a competência estatutária do conselho de administração da Companhia, tendo em vista que 2/3 dos Contratos teriam sido celebrados pela diretoria da Smiles[iii].

Quando da realização das AGEs, a GLAI, controladora da Companhia, votou pela rejeição da ação a ser proposta contra a Administração da Companhia, razão pela qual a SEP entendeu que parte do voto exercido pela GLAI teria sido inquinado pelo conflito de interesses, em afronta ao art. 115, §1º, da LSA. Apontou a área técnica que a GLAI não poderia ter votado na deliberação sobre a propositura da ação de responsabilidade contra o conselho de administração, pois os controladores da GLAI seriam membros do referido órgão da Companhia.

Assim, os controladores indiretos da Smiles teriam, na realidade, votado contra a ação de responsabilidade civil que seria proposta contra eles próprios, o que seria vedado pelo art. 115, §1º, da LSA, especialmente levando em consideração que a hipótese em questão deveria ser lida conforme o Caso Forjas Taurus, que teria estabelecido – a partir da interpretação formalista do conflito de interesses – que não seria permitido ao acionista-administrador votar contra a propositura de ação de responsabilidade em que ele seria réu, ainda que por meio de pessoa jurídica interposta.

Assim, os controladores indiretos da Smiles teriam, na realidade, votado contra a ação de responsabilidade civil que seria proposta em face deles próprios, o que seria vedado pelo art. 115, §1º da LSA, especialmente levando em consideração que a hipótese em questão deveria ser lida conforme o Caso Forjas Taurus, que teria estabelecido – a partir da interpretação formalista do conflito de interesses – que não seria permitido ao acionista-administrador votar contra a propositura de ação de responsabilidade em que ele seria réu, ainda que por meio de pessoa jurídica interposta.

Em suas razões de voto, o Diretor Relator Alexandre Rangel entendeu pela absolvição dos controladores indiretos/administradores da Smiles. O Diretor Relator destacou que, no caso concreto:

(a) a deliberação sobre a propositura de ação de responsabilidade contra o acionista-administrador não estaria encampada em qualquer hipótese de vedação de voto (que seriam as hipóteses de expressa proibição contidas no §1º, do art. 115), mas sim de conflito de interesses;

(b) não se poderia interpretar o conflito de interesses, contido na parte final do art. 115, §1º, da LSA a partir da leitura formal do conflito de interesses, uma vez que existiriam razões históricas e sistemáticas na LSA a corroborar a adequação da tese substancial;

(c) a leitura sistemática da LSA levaria à conclusão que o art. 159 da LSA preveria a possibilidade de o acionista-administrador poder votar em tal deliberação, mormente em função de o art. 159, §4º, permitir a propositura de ação social derivada, intentada pelos acionistas na qualidade de substitutos processuais;

(e) como a LSA teria previsto a destituição do acionista-administrador do cargo a partir da deliberação positiva da assembleia geral para propositura da ação de responsabilidade, retirar o direito de o acionista-administrador participar dessa deliberação significaria atribuir à parcela minoritária do capital social o poder de destituição de administradores eleitos pela maioria, especialmente nos casos em que o acionista-administrador é integrante do bloco de controle; e

(f) a distribuição dinâmica do ônus probatório em desfavor do acionista-administrador representaria o ônus adequado para o caso em tela, uma vez que, apesar de seu voto poder ser exercido, deverá ser demonstrado, no mérito, de forma consistente, a inexistência de interesses conflitantes com os da companhia, o que teria sido feito pelos acusados.

O Diretor Relator ressaltou que seria possível observar um interesse comum de ambos (dos acionistas-administradores e da Companhia) na rejeição da propositura de ações de responsabilidade que tentariam discutir os Contratos, uma vez que estaria evidente ausência de fundamento jurídico da ação de responsabilidade rejeitada pelas AGEs.

O Presidente João Pedro Nascimento proferiu manifestação de voto seguindo o entendimento do Diretor Relator. Contudo, apesar de concordar com as premissas jurídicas sobre a desconsideração do voto proferido pela pessoa jurídica interposta, ao interpretar os fatos, o Presidente considerou que a vontade da GLAI seria independente de seus controladores, não podendo se afirmar que sua organização se confundiria ou seria necessariamente servil aos acusados.

No que se refere ao conflito de interesses, o Presidente votou conforme as direções interpretativas do Diretor Relator em relação ao critério substancial e ao reconhecimento de que o acionista-administrador não está impedido, a priori, de votar na assembleia que tiver por objeto a propositura de ação de responsabilidade contra si.

Os Diretores João Accioly e Otto Lobo também acompanharam o voto do Diretor Relator, tendo o Diretor Otto Lobo apresentado manifestação de voto tratando da evolução da discussão em âmbito doutrinário e jurisprudencial. O julgamento da matéria foi suspenso, em razão do pedido de vista da Diretora Flávia Perlingeiro.

 


 

[i] Para saber mais sobre o julgado em questão: LORIA, Eli; e KALANSKY, Daniel. Processo Sancionador e Mercado de Capitais III – Estudo de Casos e Tendências Julgamentos da CVM. São Paulo: Quartier Latin, 2018.

[ii]7. Assim sendo, a deliberação acerca da propositura de ação de responsabilidade civil em face dos administradores é o consectário lógico, ainda que não necessário, da reprovação de suas contas. Tanto assim que a ação de responsabilidade pode ser deliberada na assembleia geral ordinária mesmo que não conste da ordem do dia, uma vez que se presume que essa será motivada pelo fato que justificou a rejeição das contas dos administradores, ou a sua aprovação com ressalva. 8. Diante de todo o exposto, parece-me claro que o acionista-administrador estaria atuando como juiz e parte, que é justamente o que a lei visa proibir na regra em comento, tanto na deliberação acerca da sua exoneração de responsabilidade (mediante a outorga do quitus), quanto naquela relativa à eventual propositura de ação de responsabilidade civil contra si. Por tal razão, me parecer incoerente proibir o voto na primeira e autorizar o voto na segunda.” (CVM. PAS nº RJ2014/10556, Rel. ex-Diretor Pablo Renteria, trecho do Voto do ex-Diretor Gustavo Gonzalez, j. 24.10.2017)

[iii] O único contrato aprovado pelo conselho de administração da Companhia, que possuía o valor de R$1,2 bilhão, não contou com o voto dos acusados, uma vez que se julgaram impedidos na deliberação específica.

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