VOTO DE QUALIDADE NO CRSFN: IN DUBIO CONTRA REO?

POR ELI LORIA | 17/03/2020 – JORNAL JOTA

Em 2017 publiquei um artigo no qual critiquei o uso inadequado do voto de qualidade em prejuízo do réu em julgamento de processos administrativos sancionadores no âmbito da CVM e do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN).

Destaquei que, no advento de um empate, a inocência do acusado deveria prevalecer, em respeito ao princípio do in dubio pro reo e a presunção de inocência. A culpa, seja em processo penal seja em processo administrativo sancionador, deve ser demonstrada além de dúvida razoável.

O direito sancionador se subdivide em direito penal e direito administrativo sancionador. As normas que regem a atuação punitiva do Estado possuem a mesma raiz ontológica e, portanto, no dizer da doutrina majoritária, os princípios do direito penal são aplicáveis ao direito administrativo sancionador, ainda que relativizados.

Recorde-se que o processo administrativo foi jurisdicionalizado pela Constituição Federal em seu art. 5o, LV, assegurando aos litigantes e aos acusados em geral, seja em processo judicial ou administrativo, o contraditório e a ampla defesa.

Em direito penal a presunção de culpa é afastada pelo princípio constitucional da presunção de inocência, consolidado no art. 5o, LVII, da Constituição Federal como corolário dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, derivando daí o princípio do in dubio pro reo.

E, voltando na história, encontraremos o princípio da presunção de inocência na Declaração dos Direitos do Homem de 1789 e na de 1948. Cabe à acusação comprovar a culpa do acusado e não o acusado demonstrar sua inocência, devendo a dúvida ser tomada em favor do réu.

A CVM reconheceu ser justo esse raciocínio e mudou a forma como aplicava a prerrogativa a partir do julgamento do PAS CVM RJ2014/10556 em 28.11.2017 e, posteriormente, incorporou tal critério na regulação com a edição da Instrução CVM 607/19.

Já o CRSFN não modificou a sua prática. Enquanto o Colegiado da CVM é composto por cinco julgadores, o que leva o empate a ser exceção, no CRSFN, órgão composto de oito julgadores, o empate tende a ocorrer com maior frequência.

O CRSFN é um órgão paritário sendo metade de seus membros escolhidos por órgãos da administração pública (Ministro da Economia (2), CVM e BACEN) e os demais por representantes do mercado financeiro e de capitais. Ocorre que apresidência do CRSFN é exercida por um dos conselheiros titulares indicados pelo Ministro da Economia.

Empates são frequentes e o voto do Presidente sempre prevalece, muitas vezes contra o réu. Existe uma tendência ao uso do voto de qualidade por conta da própria estrutura do órgão e a paridade do Conselho fica prejudicada.

O dispositivo trazido no Decreto 9889/19, que dispõe sobre o CRSFN, dando, em caso de empate, o voto de qualidade ao Presidente, não impede, em absoluto, que o Presidente faça prevalecer o princípio do in dubio pro reo quando de sua manifestação.

Além dessa questão estrutural há, ainda, uma conceitual e, por consequência, mais grave: o uso do voto de qualidade para formar a condenação. Primeiro, o princípio in dubio pro reo preceitua que o acusado deve ser inocentado caso seus acusadores, que muitas vezes atuam pelo não princípio in dubio pro societate, não consigam convencer os julgadores de sua culpa.

Em outras palavras, a mera existência de um empate é sinal de que o colegiado não está seguro da antijuridicidade da conduta. Respeitar esse empate equivaleria a valorizar e respeitar o intelecto dos Conselheiros, de modo paritário, e não sobrepor o posicionamento de um dos membros ao dos demais.

O voto de qualidade existe para suprir a ausência de um dos julgadores, quando o quórum passa a ser composto por um número par de julgadores. Esse dispositivo não foi elaborado para ser de uso corriqueiro, em verdade seu uso deveria ser raro.

Esta opinião é partilhada em julgamentos no âmbito do Poder Judiciário. No Processo n° 0017326-94.2017.4.01.3400, julgado em março de 2019, em Mandado de Segurança, os autores pediram o cancelamento das penalidades impostas pelo CRSFN em favor das penas mais brandas, que foram vencidas pelo voto de qualidade.

Na sentença o juiz relata como os valores exorbitantes levariam a companhia à liquidação e o administrador à falência civil. Em suas palavras considerou ser ilegal a condenação por voto de qualidade, devendo ser adotado o entendimento mais favorável ao indiciado. O caso aguarda julgamento em segundo grau.

Já no Processo no 1000166-68.2019.4.01.3400, julgado em outubro de 2019, os requerentes haviam sido condenados duas vezes com a adoção do voto de qualidade: na CVM e no CRSFN.

A juíza da 5a Vara SJDF deu uma solução inovadora: computou o voto do presidente como sendo ordinário, prevalecendo o empate, e determinou que o Ministro da Economia proferisse um voto de minerva, por ser autoridade hierarquicamente superior.

A União recorreu da decisão de primeiro grau e o voto de desempate está suspenso até o julgamento do agravo. O importante nesse caso é que, mesmo que tenha sido uma solução diferente, ainda assim computou todos os votos igualmente.

Sintetizando o que foi dito, não é aceitável que o CRSFN continue a condenar com a utilização do voto de qualidade, principalmente por conta de sua composição par.

Não é paritário nem justo, além de não respeitar o princípio da presunção de inocência. Na esfera punitiva deve prevalecer o princípio de in dubio pro reo. O CRSFN é digno de melhores mecanismos de desempate.

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