POR ELI LORIA | 16/01/2017 – JORNAL VALOR ECONÔMICO
Conforme já informado na edição de 14 de novembro de 2016 deste jornal, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) questionará a constitucionalidade do voto de qualidade do presidente do CARF nos processos administrativos ali julgados. Resguardadas as peculiaridades, tal questionamento deve se estender também à CVM e ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional.
O voto de qualidade foi instituído na Comissão de Valores Mobiliários, em 1977, por meio de uma Portaria do Ministério da Fazenda. O comando normativo, que aprova o regimento interno da CVM, estabelece que nas reuniões do Colegiado a cada membro caberá um voto, e as deliberações do Colegiado deverão ser tomadas pelo voto da maioria de seus membros, cabendo ao presidente o voto de qualidade.
A estrutura do Colegiado da CVM conta com número ímpar de julgadores, sendo quatro diretores e um presidente. Contudo, caso haja a ausência de um diretor e cumulativamente um empate a respeito da decisão, o Presidente da autarquia pode utilizar-se do voto de qualidade como critério de desempate. As ausências podem dar-se devido à vacância do cargo, à medida que o mandato dos diretores é de período determinado, a férias, ao impedimento ou suspeição do julgador.
O voto de minerva ganha especial destaque nos Processos Administrativos Sancionadores julgados pela Comissão de Valores Mobiliários nos casos em que, por determinado motivo, há número par de diretores, possibilitando-se a existência de um empate nos julgados. A Deliberação CVM nº 538 ratifica o entendimento da Portaria do Ministério da Fazenda, possibilitando a aplicação do voto de qualidade do presidente da sessão nos julgamentos dos processos sancionadores.
O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional também admite tal resolução de impasses, fundamentada, assim como na CVM, por uma Portaria do Ministério da Fazenda, mas datada de 2016. Isso porque, o Decreto que instituía o voto de qualidade no CRSFN foi revogado integralmente esse ano.
O leitor pode imaginar que tal instrumento seja utilizado de forma excepcionalíssima, ou que tal hipótese de ausência cumulada com o empate seja mera discussão doutrinária e acadêmica, não ocorrendo na prática. Entretanto, o voto de qualidade foi utilizado na CVM por três vezes nos últimos dois anos, sendo que em todas elas sua utilização culminou na condenação do acusado.
Mas se tratando de processo administrativo sancionador, seria esse o método correto para a solução do impasse entre os julgadores? Como bem sabemos o direito administrativo sancionador fundamenta-se e utiliza, por muitas vezes, os mesmos princípios do Direito Penal, à medida que se encontram sob o mesmo texto constitucional e materializam-se como o jus puniendi do Estado, que conforme entendimento doutrinário é uno e indivisível, aplicando severas penas aos transgressores das leis e normas regulamentares. Essa inegável aproximação entre os dois ramos do Direito já foi, inclusive, reconhecida pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Dessa forma, incongruente seria se as garantias individuais fundamentais do direito penal, segmento do direito de evidente caráter residual e protetor dos bens jurídicos considerados mais importantes em uma sociedade, não fossem refletidas também no âmbito do processo administrativo sancionador. Ademais, a definição se determinado ilícito é penal ou administrativo é meramente discricionária por parte do legislador não existindo qualquer critério quantitativo ou qualitativo para a sua separação.
Nesse sentido, um dos princípios basilares do processo penal garantista vigente em nosso país e ratificado, ainda que não expressamente, pela Constituição de 1988, refere-se ao princípio da inocência, ou na expressão latina, o in dubio pro reo, cuja tradução literal resulta em “na dúvida, a favor do acusado”. Luigi Ferrajoli, ilustre mestre italiano, criador da teoria garantista do direito penal, na sua obra Direito e Razão, estabelece que a presunção de inocência é um princípio fundamental de civilidade, decorrente de uma opção garantista que visa à tutela da imunidade dos inocentes, ainda que acarrete na impunidade de algum culpado, pois, basta que os culpados sejam geralmente punidos, desde que todos os inocentes, sem exceção, estejam a salvo de uma errônea condenação.
O princípio é amplamente utilizado no Direito Penal. Sua materialização ganhou notória e recente relevância na Ação Penal 470, o famoso mensalão. No caso julgado pelo Supremo, sete acusados foram absolvidos utilizando-se o princípio do in dubio pro reo, à medida que estavam empatados os votos dos ministros da Suprema Corte Brasileira.
Nesse mesmo sentido, como já me referi no vol. 70 da Revista de Direito Bancário (out-dez 2015), cabe no processo administrativo sancionador, e não apenas no Direito Penal, o princípio da presunção de inocência estabelecido no Pacto de San José da Costa Rica, recepcionado pelo nosso ordenamento jurídico em 1992.
Assim, diante de um empate entre os julgadores, envolvendo a condenação ou absolvição de um acusado, os princípios garantistas do direito penal devem ser aplicados e a inocência do então réu ser declarada pelo Colegiado da CVM e do CRSFN, sob pena de suprimir-se um dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.