Earn-Out na compra de ativos judiciais – Migalhas

Daniel Kalansky

A negociação para a cessão de um ativo judicial não é uma tarefa fácil. De um lado, o vendedor quer receber o menor deságio (maior preço) possível e, de outro lado, o comprador precisa encontrar soluções para precificar determinado ativo judicial que permitam um retorno atrativo ao investimento realizado e certas proteções para eventos e riscos que não estejam sob seu controle, como por exemplo, o tempo de duração do processo, a determinação de valores que ainda sejam controversos na fase de liquidação de sentença, dentre outras variáveis.

Uma das formas de precificação e negociação para conseguir alcançar um resultado que atenda as duas partes é realizar a cessão do direito creditório decorrente de uma disputa judicial ou arbitral estabelecendo um preço com um mecanismo de earn-out.

Já tive oportunidade de participar de operações de cessão de direitos creditórios envolvendo ativos judiciais em que, para conseguir destravar a operação, a única forma encontrada para dar o conforto para o vendedor foi realizar uma cessão em que o preço era composto por uma parcela inicial e fixa, paga quando da celebração do contrato de cessão, e uma parcela variável e condicionada, vinculada ao tempo e ao valor dos recebimentos pelo comprador. Ainda, foi pactuado um retorno preferencial que estabelecia que, enquanto os valores recebidos pelo comprador fossem inferiores ao valor da parcela inicial paga ao vendedor, corrigido por uma determinada taxa, nada seria devido ao vendedor, a título de pagamento da parcela adicional; porém, tão logo o valor dos recebimentos excedesse o retorno preferencial, o comprador pagaria à título de parcela adicional, um determinado percentual do valor excedente ao vendedor.

Dessa forma, o vendedor teria segurança de que, caso o processo fosse resolvido dentro do tempo esperado, bem como os valores controversos fossem devidamente pagos ao comprador, ele faria jus, quando do recebimento, a um valor importante, a título de preço. É isso que chamamos, no jargão da compra de ativos judiciais, fechar uma operação de true sale com earn-out.

Para trazer mais concretude para este tipo de negociação de compra de ativo judicial, é interessante comentar um caso de uma empresa de petróleo e gás chamada Rockhopper Exploration plc (“Rockhopper”)1.

Em 23 de março de 2017, a Rockhopper iniciou um processo de arbitragem internacional contra a República da Itália em relação ao projeto Ombrina Mare. Nessa arbitragem, a empresa buscava indenização, tendo em vista que, em fevereiro de 2016, o Ministério do Desenvolvimento Econômico da Itália não havia realizado a concessão de produção abrangendo o campo Ombrina Mare. Para começar a arbitragem, a empresa obteve um financiamento de um fundo para financiar a disputa.

Em 24 de agosto de 2022, o tribunal arbitral decidiu, por unanimidade, que a República da Itália violou as suas obrigações, conferindo à Rockhopper uma indenização de 190 milhões de euros, acrescidos de juros à taxa EURIBOR + 4%, compostos anualmente a partir de 29 de janeiro de 2016, até o momento do pagamento.

Entretanto, em 20 de outubro de 2022, a República da Itália apresentou um pedido ao Centro Internacional para a Resolução de Conflitos sobre Investimentos (“ICSID”) visando a anulação da sentença, nos termos do artigo 52.º da Convenção ICSID. A República da Itália também solicitou a suspensão provisória da execução da sentença, nos termos do artigo 52(5) da Convenção ICSID. A suspensão provisória impediu a Rockhopper de tomar medidas legais para fazer cumprir a sentença em qualquer jurisdição.

A Rockhopper vislumbrou que poderia existir a possibilidade de monetizar este direito creditório decorrente da disputa arbitral e, em 20 de dezembro de 2023, celebrou um contrato de cessão de direito creditório com um fundo com mais de $4 bilhões sob gestão especializado em legal claims (“Fundo”). Nos termos do contrato celebrado, o Fundo pactuou pagamentos em dinheiro, à Rockhopper, em até três parcelas:

  • Parcela 1 – 45 milhões de euros, sendo aproximadamente 19 milhões de euros para a Rockhopper e aproximadamente 26 milhões de euros para o financiador original da arbitragem2;
  • Parcela 2 – pagamento contingente adicional de 65 milhões de euros, devidos após um resultado favorável para a companhia em relação ao pedido de anulação da sentença arbitral. Caso a sentença fosse parcialmente anulada, reduzindo-se o montante do valor da indenização, a Parcela 2 seria reduzida, de modo que os valores da Parcela 1 e da Parcela 2 fossem ajustados para baixo, proporcionalmente. Por exemplo, se o montante da sentença fosse reduzido em 20%, os montantes das Parcela 1 e 2 seriam reduzidos igualmente em 20%3; e
  • Parcela 3 – Pagamento potencial de 20% na recuperação de montantes superiores a 200% do investimento total do Fundo, incluindo custos.

O contrato de cessão celebrado com o Fundo trouxe diversos benefícios para a companhia, como, por exemplo:

  • Fortalecimento do balanço patrimonial da Rockhopper, sem diluição para os acionistas;
  • Redução dos riscos da disputa arbitral, mantendo vantagens potencialmente significativas;
  • Remoção dos custos futuros associados à sentença arbitral, tenho em vista que o Fundo cobrirá todos os custos relacionados à arbitragem;
  • monetização do direito creditório ao invés de aguardar o resultado da anulação, o que pode levar alguns anos; e
  • concentração da companhia no seu core business ao invés de drenar energias em uma disputa, permitindo a utilização dos recursos da monetização tanto para o capital de giro, como para as oportunidades de investimentos a serem desenvolvidas pela companhia.

Este é um típico caso em que a operação de cessão de crédito de um ativo judicial somente se tornou possível com a implementação do earn-out, de forma que uma parcela do preço ficou atrelada ao resultado favorável do processo, observada a necessidade de um retorno mínimo do investimento realizado pelo Fundo (o que, neste caso, foi estabelecido como 200% do valor investido, de forma que após o pagamento do retorno preferencial, 20% seriam destinados ao vendedor do direito creditório).

Não se preocupem que voltarei a falar sobre este caso quando for definitivamente resolvido. Assim que tivermos uma decisão final, poderemos compartilhar com os leitores se o vendedor do direito creditório fará ou não jus aos 20% remanescentes do que exceder o retorno de 200% do investimento feito pelo Fundo. Por enquanto, tanto a Rockhopper, como o primeiro fundo que financiou a arbitragem, já conseguiram monetizar parte do direito creditório. Agora precisamos saber se realmente o Fundo que comprou o direito creditório terá lucro ou não. Acompanhem!


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¹ Disponível aqui.

² Como mencionado anteriormente, a Rockhopper celebrara um acordo de financiamento de litígio, em 2017, por meio do qual todos os custos relacionados à arbitragem, desde o início, até a sentença, seriam pagos em seu nome por um financiador especializado em arbitragem. Esse acordo dava ao financiador original o direito a uma proporção de quaisquer benefícios econômicos da sentença ou de qualquer monetização que a companhia viesse a efetuar do referido direito creditório. A Rockhopper celebrou um acordo com o financiador da arbitragem original para pagar 26 milhões de euros dos recursos da Parcela 1 para saldar todas as suas responsabilidades sob o acordo. Além disso, a Rockhopper deveria pagar honorários de sucesso aos advogados, no valor aproximado de 4 milhões de euros, quando do trânsito em julgado da decisão sobre a arbitragem. Depois de efetuar esses pagamentos, a Rockhopper reteria aproximadamente 15 milhões de euros do pagamento da Parcela 1 e 100% de todos os pagamentos das Parcelas 2 e 3.

³ Em qualquer caso, os montantes das Parcelas 1 e 2 nunca seriam inferiores a 45 milhões de euros.

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