É possível adquirir créditos de ações coletivas?

Daniel Kalansky

Um tema muito recorrente que trato com os fundos de financiamento de litígios refere-se às class actions no Brasil. E, dentro dos diversos temas que acabam surgindo, um recorrente refere-se à questão da legitimidade ativa e representatividade das associações para ajuizarem ações civis públicas, principalmente no que se refere à pertinência temática e representatividade adequada para defesa dos direitos.

Nessas discussões, surgiu o seguinte questionamento: os indivíduos potencialmente beneficiados por uma futura sentença a ser proferida na ação civil pública podem dispor ainda na fase de cognição de seus direitos litigiosos com a eventual cessão de crédito para fundos de investimento? Ou a cessão de créditos decorrentes do exercício coletivo de direitos individuais homogêneos seria indisponível por natureza?

De modo bastante breve, os direitos individuais homogêneos situam-se ao lado dos direitos difusos e coletivos. O art. 81, do CDC define a natureza de cada um desses direitos do seguinte modo: os direitos difusos são aqueles transindividuais, de natureza indivisível, pertencentes a pessoas indeterminadas, ligadas por circunstâncias de fato; os direitos coletivos, também transindividuais e indivisíveis, pertencem a um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica comum; por fim, os direitos individuais homogêneos decorrem de uma origem comum.

Didaticamente, pode-se exemplificar direitos difusos como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado1. Já os direitos coletivos podem ser ilustrados pelos direitos dos consumidores de receberem serviços de qualidade das prestadoras de telefonia2. Os direitos individuais homogêneos, por sua vez, emergem da sociedade de massa, em que diversas pessoas indistintas compartilham uma pretensão comum3. Nesse caso, embora não sejam considerados coletivos em sentido estrito, a legislação lhes atribui uma transindividualidade instrumental, com o objetivo de otimizar o acesso à Justiça e promover a economia processual4.

A questão central, portanto, reside em compreender se direitos individuais homogêneos, quando ainda na fase cognitiva de uma ação civil pública, são considerados direitos disponíveis ou indisponíveis, bem como determinar se a cessão dos direitos de crédito resultante da violação de direitos individuais homogêneos desnatura a sua qualificação jurídica, impedindo o uso de medidas processuais previstas na lei 7.347, de 24/7/85 (“lei 7.347/85”).

Os grandes argumentos no sentido de que na fase cognitiva da ação civil pública o direito individual homogêneo seria indisponível e, portanto, não passível de cessão, seriam os seguintes:

os direitos individuais homogêneos resultam de situações que afetam diretamente um grupo de pessoas, sem individualização suficiente para permitir a sua cessão;
admitir a cessão, segundo esse entendimento, poderia comprometer a coesão do grupo e prejudicar a tutela coletiva, favorecendo interesses privados e enfraquecendo a defesa judicial conjunta e prejudicando a tutela coletiva que é o cerne dos direitos homogêneos;
como a cessão dos direitos homogêneos implicaria na fragmentação do grupo de titulares, quebrando a coesão necessária para a defesa eficaz de seus interesses, o caráter transindividual de tais direitos levaria eles possuírem uma indisponibilidade relativa;
no curso das demandas coletivas, é ilícita a cessão dos direitos individuais homogêneos, pois, na forma do art. 286 do CC, “o credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei (…)”;
o STJ já decidiu que “o interesse individual homogêneo é um direito individual que acidentalmente se torna coletivo e, pois, indisponível, quando transcender a esfera de interesses puramente particulares, envolvendo bens, institutos ou valores jurídicos superiores, cuja preservação importa à comunidade como um todo”;5
apesar de o direito de crédito decorrente da responsabilidade civil do autor do ilícito possuir natureza individual e disponível, na fase cognitiva da ação civil pública tais direitos seriam um bem indivisível para uma multiplicidade de vítimas com interesses convergentes na obtenção de uma condenação, somente adquirindo individualidade e disponibilidade quando passado ao exame das pretensões individuais em fase de liquidação ou de cumprimento de sentença; e
o conjunto das posições jurídicas de vantagem que a lei confere aos legitimados extraordinários para propositura de ação civil pública não pode ser simplesmente cedida ou transferida a quem não ostente tal condição.

Em resumo, os argumentos acima levariam ao entendimento de que a cessão de direitos individuais homogêneos desnaturaria a qualificação jurídica originária do crédito cedido, uma vez que o cessionário seria um investidor e não os verdadeiros afetados. A consequência de tal operação jurídica seria a perda dos privilégios processuais designados para o processo coletivo, uma vez que o regime processual em nosso direito é de caráter indisponível, fazendo o investidor – detentor dos direitos – não poder utilizar a tutela coletiva, mas sim ir em juízo perquirir o direito de crédito que é titular, dentro dos limites traçados pelo sistema processual ordinário.

Tais argumentos, entretanto, não me convencem.

As ações civis públicas são um advento processual relativamente moderno em nosso ordenamento jurídico, em que vige a impossibilidade de litigar direito alheio. Quando a lei 7.347/85 foi elaborada, o intuito do legislador era trazer para nosso sistema jurídico o mecanismo que fora previsto na Itália, França, Espanha e outros países de matriz civil law que promoveram tais medidas sob forte inspiração do sistema de litigância coletiva estadunidense – .6 7

Naquele momento, o principal ponto que levou à criação do regime previsto na lei 7.347/85 foi ampliar o acesso à Justiça. Isso porque, em muitos casos aqueles afetados por danos coletivos, sejam os danos a direitos coletivos em sentido estrito ou os individuais homogêneos, nem sempre possuem os melhores meios para fazer valer os seus direitos, pois são em muitos casos hipossuficientes e com reduzida capacidade de articulação institucional.

Argumentar que a cessão dos direitos individuais homogêneos levaria à perda do regime processual atinente à tutela coletiva distanciaria na prática o que nosso ordenamento jurídico privilegiou com a criação de ações coletivas para proteção de direitos individuais homogêneos, que justamente ganham conotação coletiva para possibilitar o acesso à Justiça e promover economia processual.

Os direitos individuais homogêneos podem ser individualizados e possuem natureza patrimonial. O nosso sistema jurídico permite a livre a cessão deles, desde que não haja restrição legal expressa. Nesse contexto, a cessão de direitos é contrato abstrato, cuja validade e eficácia não dependem do negócio jurídico sub ou sobrejacente que lhe tenha dado causa, razão pela qual o crédito permanece o mesmo, regido pelas mesmas normas de natureza material e processual; o que é modificado é tão somente aquele que o detém.

Ainda, o nosso sistema jurídico privilegia a autonomia privada, motivo pelo qual os titulares de direitos individuais homogêneos devem ter a liberdade de dispor de seus direitos como entenderem. A cessão de direitos, nesse contexto, é um exercício legítimo, não existindo um fundamento jurídico para limitar a capacidade dos titulares de ceder esses direitos.

Noto, ainda, que a cessão de direitos homogêneos também permite aos titulares que não desejam esperar pelo desfecho do processo ou tenham dificuldades financeiras obterem compensações imediatas através da cessão, promovendo a proteção concreta dos seus interesses.

O cessionário dos direitos não interfere na condução do processo, pois o legitimado ativo que moveu a ação coletiva continua a ser responsável pela defesa dos interesses de todos os titulares, incluindo os cessionários. Mesmo que os direitos sejam cedidos, a sentença proferida no processo coletivo continua a beneficiar ou vincular todos os membros do grupo, incluindo os cessionários. A cessão, portanto, não cria um “novo” litígio, somente transferindo o direito de receber os benefícios da ação coletiva.

Ademais, sendo os direitos individuais homogêneos cedidos de caráter eminentemente patrimonial, é razoável concluir que o investidor, proprietário do direito, terá seu interesse alinhado com os demais membros do grupo, motivo pelo qual a cessão não representa, em si mesma, um risco para garantia dos interesses do grupo de afetados.

O sistema de tutela coletiva em vigor no direito brasileiro não dá conotação de indisponibilidade transitória aos direitos individuais homogêneos, uma vez que a pretensão engloba a faceta patrimonial deles, que possui natureza privada. Assim, coletiva é apenas a forma do processamento da ação. Entender pela indisponibilidade transitória dos direitos individuais homogêneos seria sobrepor os aspectos processuais à materialidade do negócio jurídico celebrado.

Um outro fator que contribui para a liberdade da cessão é o fato de que em nosso sistema jurídico a ação coletiva é manejada por um representante institucional previamente definido em lei, diferentemente do estadunidense, que atua sob a premissa de que os membros individuais de uma dada classe conseguem defender os interesses coletivos satisfatoriamente.

Essa desvinculação entre a figura do investidor, proprietário do direito de crédito decorrente da pretensão individual homogênea, e o autor da demanda judicial, contribui para a redução dos riscos de captura dos interesses tutelados pelo ordenamento. Afinal de contas, por disposição legal e estatutária, os legitimados ativos para propositura de ações coletivas devem atuar no melhor interesse da classe que defendem, sendo certo que o juiz pode sempre observar a adequação da representatividade no caso concreto, de modo a certificar-se de que os interesses estão sendo bem defendidos.

Dessa forma, o problema da representatividade adequada e da correta defesa dos interesses da classe de afetados não é prejudicada pela cessão dos direitos individuais homogêneos, que podem circular livremente, uma vez que possuem destacado caráter patrimonial e são acidentalmente coletivos, cuja transindividualidade é meramente instrumental.

Assim, penso que a possibilidade de cessão de direitos individuais homogêneos é algo que, além de estruturalmente fazer sentido em nosso direito, também está alinhado com o interesse que se busca proteger no sistema judicial brasileiro, que é a promoção de acesso à Justiça. Impossibilitar a cessão seria negar vigência aos arts. 286 e 293 do CC, ambos claros ao destacar a regra da livre possibilidade de cessão de direitos e a assegurar que o cessionário do direito cedido possa exercer todos os atos conservatórios necessários para preservar o direito objeto da cessão.


Acesse o artigo original no site Migalhas clicando aqui.

1 Como é o exemplo da Ação Civil Pública proposta pelo Mistério Público de Alagoas, cuidando da contaminação ao Rio Mundaú e ao Complexo Estuarino Lagunar Mundaú-Manguaba, cuja poluição é resultante, dentre outras, do lançamento de esgotos in natura (BRASIL. TRF-5, ACP 0800073-17.2017.4.05.8002, em trâmite perante a 3ª Vara Federal de Alagoas).

2 Um bom exemplo da tutela de direitos coletivos por meio da Ação Civil Pública foi a demanda proposta pelo Ministério Público Federal e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC, em face do Whatsapp LLC e da Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD em razão da política de privacidade utilizada pela empresa proprietária da aplicação para comunicação. (BRASIL. TRF-3, ACP 5018090-42.2024.4.03.6100, em trâmite perante a 2ª Vara Cível de São Paulo).

3 Exemplo de Ação Civil Pública visando à proteção de direitos individuais homogêneos é o caso da demanda proposta pela Associação Brasileira dos Portadores da Síndrome da Talidomida – ABPST, que condenou a União a indenizar os afetados pela comercialização do remédio que era usado por mulheres gravidas para combater enjoos. (BRASIL. TRF-3, ACP 0028796-44.2002.4.03.6100, em trâmite perante 20ª Vara Cível de São Paulo).

4 Como é possível notar, existem diversos casos em que sobre um mesmo fato incidirá a tutela de direitos coletivos em sentido estrito, como são os direitos difusos e coletivos, como também dos direitos individuais homogêneos. Para distinguir uns dos outros é necessário que seja verificada a pretensão levada em juízo, nesse sentido, Cf.: CUNHA, Alcides Munhoz da. Evolução das ações coletivas no Brasil. Revista de Processo, vol. 77 jan/mar 1995, p. 224.

5 BRASIL. STJ. REsp nº 1.888.383/RS, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, 3ª Turma, j. 24.11.2020. Note-se que, conquanto a ementa do julgado e a fundamentação do voto da Ministra Nancy Andrighi contenham o trecho indicando a indisponibilidade dos direitos individuais homogêneos para firmar a legitimidade do Ministério Público, a Relatora baseou-se também em outra decisão exarada pelo STJ no âmbito do Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1261198/GO, que firma a natureza disponível dos direitos individuais homogêneos, bem como ressalta a competência para atuação do Ministério Público “quando constatada a relevância social objetiva do bem jurídico tutelado”, havendo, inclusive, outras decisões do STJ em sentido oposto, Cf.: BRASIL. STJ. REsp nº 1.480.250/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, j. em 18.08.2015; BRASIL. STJ. REsp nº 1.033.274/MS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 06.08.2013; BRASIL. STJ. REsp nº 945.785/RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, 2ª Turma, j. em 04.06.2013.

6 Conforme expõe Teori Zavascki, tratando dos antecedentes históricos do nosso subsistema de processo coletivo, Cf.: ZAVASCKI, Teori, Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos – 6. Ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, pp. 29-30.

7 Conforme narra a exposição de motivos do projeto de lei que redundou na promulgação da Lei 7.347/85, Cf.: “(…) o anteprojeto parte do princípio de que há um titular dos direitos subjetivos perfeitamente identificado, e que esse titular é quem tem a legitimidade processual para defender, em juízo, os seus direitos. Mas existem outros interesses que não são individualizados, pois correspondem a um grupo, a uma comunidade ou à sociedade. Nesses casos, não se vislumbra claramente quem é que poderia, em seu próprio nome, defender esses interesses não individuais. Ao Ministério Público como defensor natural do interesse público deve caber, preferencialmente, a titularidade ativa daqueles interesses não individuais, indisponíveis da sociedade, com a conseqüência de poder provo cara atividade jurisdicional, na conformidade, aliás, da Lei Complementar No. 40, de 14 de dezembro de 1981 (Lei Orgânica do Ministério Público) que trata da ação civil pública como função institucional do Ministério Público. (…) Essas entidades são, ao lado do Poder Público, que obviamente tem legitimidade para defender interesses coletivos, as associações que incluam estre suas finalidades, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, ou a qualquer outro interesse difuso” (BRASIL. Câmara dos Deputados, dossiê do Projeto de Lei 4.984/1985. Disponível aqui.

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