CVM JULGA CASO ENVOLVENDO A ANÁLISE DO DEVER DE SUPERVISÃO DE ADMINISTRADOR FIDUCIÁRIO

 

Em 09.05.2023, a CVM julgou importante caso para definição da extensão dos deveres fiduciários dos prestadores de serviço de fundos de investimento. O Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.007862/2018-20 tratou de acusações de supostas práticas de operação fraudulenta, bem como de eventuais falhas da administradora de um FIDC, no contexto de supostas irregularidades na cessão de diretos creditórios, originados de um “Contrato de Compra e Venda de Álcoois” (“Contrato”), celebrado entre duas empresas de biocombustível (em conjunto “Cedentes”) e uma distribuidora de combustível (“Distribuidora”).

A discussão mais importante, decorrente da divergência entre o Diretor Relator, Alexandre Rangel, e o Diretor João Accioly, ocorreu em relação ao dever de fiscalização. O Diretor Relator Alexandre Rangel entendeu que a administradora do FIDC teria desrespeitado sua obrigação de fiscalização, enquanto o Diretor João Accioly constatou que não seria exigível qualquer postura diferente. 

Segundo apurado, o FIDC foi estruturado para adquirir direitos creditórios apenas das duas Cedentes, tendo ocorrido somente um único instrumento contratual regulando a cessão de direitos creditórios ao FIDC, e havia apenas uma sacada, a Distribuidora, como devedora principal dos direitos creditórios que poderiam ser adquiridos pelo FIDC. Para viabilizar a operação, de um lado, empresas relacionadas ao gestor do FIDC teriam atuado na estruturação, emissão e distribuição dos direitos creditórios que, em parte, foram cedidos ao FIDC, recebendo uma remuneração, no valor de 4% da quantia distribuída (“Comissão de Distribuição”), a ser paga pelas Cedentes, enquanto, na outra ponta, o gestor atuaria na aquisição desses direitos creditórios pelo FIDC.

Na prática, verificou-se que: (i) o montante de 4% da Comissão de Distribuição seria muito acima da média de mercado; (ii) R$ 26,9 milhões, montante equivalente a 57% dos aportes realizados pelos cotistas do FIDC, não teria sido destinado à viabilização das atividades das Cedentes necessárias à produção de álcool; (iii) as empresas relacionadas ao gestor que aturam na distribuição dos direitos creditórios receberiam o pagamento da Comissão de Distribuição diretamente do FIDC, e não das Cedentes; e (iv) as Cedentes não teriam cumprido o Contrato a contento, uma vez que entregavam álcoois aquém do contratado com a Distribuidora.

Tais fatos levaram o FIDC a uma situação de completa insolvência, resultando na sua liquidação ordinária em 26.03.2012 e posterior cancelamento em 28.03.2012, cerca de 1 ano e 5 meses após seu registro na CVM. Tendo em vista esses fatos, o Diretor Relator Alexandre Rangel compreendeu que a administradora teria infringido o art. 65, inciso XV, da ICVM 409, vigente à época dos fatos, uma vez que não teria corretamente empregado a diligência necessária para fiscalizar a atuação do gestor.

O Diretor Relator Alexandre Rangel ponderou que a ICVM 409 encerrava um regime jurídico que possuía um foco de atenção destacada sobre a figura do administrador fiduciário, que ocupava a posição de principal prestador de serviços do fundo, sendo responsável por toda e qualquer contratação de outros prestadores de serviços e a fiscalização dos prestadores contratados (abordagem regulatória que, vale notar, foi sensivelmente alterada com a edição RCVM 175).

Acerca do dever de fiscalização do administrador fiduciário, o Diretor Relator Alexandre Rangel pontuou que que não haveria qualquer indicação objetiva de atos ou procedimentos específicos que, uma vez realizados, obrigatoriamente conduziriam ao atendimento do dever de fiscalização do administrador fiduciário previsto na ICVM 409. O comando regulatório em questão, na realidade, representaria uma obrigação de meio, centrada no padrão de conduta diligente de fiscalização da atuação dos prestadores de serviços contratados.

Assim, para o Diretor Relator Alexandre Rangel, cotejando as provas constantes dos autos, a administradora teria agido aquém de suas responsabilidades. Segundo seu voto, a administradora teria incorrido em falha no dever de fiscalizar porque: (i) havia histórico de inadimplência das Cedentes, desde 31.03.2009, data de assinatura do Contrato (e 1 ano e 3 meses antes da efetiva transferência dos direitos creditórios ao FIDC); (ii) seria possível identificar o conflito de interesses do gestor, por conta das características da estrutura de sua remuneração; e (iii) a atuação do gestor não teria sido fiscalizada pela administradora, no que tange à execução do Contrato.

Por outro lado, o Diretor João Accioly, em suas razões de voto, argumentou que, apesar das falhas identificadas pelo Diretor Relator, não seria exigível conduta diversa da administradora. Para o Diretor João Accioly, a administradora teria sido diligente, tendo se mostrado proativa, cuidadosa e eficaz, detectando problemas que a acusação também teria identificado. Dessa forma, o problema estaria relacionado tão somente ao momento em que a administradora tomou ciência das irregularidades, o que, no caso, não teria ocorrido por negligência, ou de qualquer grau de culpa consciente, mas, na realidade, por mera falha humana, que seria escusável.

Apesar de tais considerações, os demais membros do Colegiado da CVM concordaram com as razões de voto do Diretor Relator, Alexandre Rangel, julgando pela condenação da administradora à penalidade de advertência, uma vez que teria falhado no dever de fiscalizar as atividades do gestor do FIDC.

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